O mural “Híbrida Ancestral – Guardiã Brasileira”, da artista Criola, com 1.365 metros quadrados, realizada na lateral de uma parede do Condomínio Chiquito Lopes, no centro de BH, é o centro de uma polêmica que discute um possível apagamento, solicitado por um morador do local, que alega que ela tem “gosto duvidoso”.
O trabalho, que faz parte do projeto do Circuito Urbano de Arte (Cura), mostra uma mulher negra, com uma cobra atravessando o seu ventre e um útero do lado esquerdo. A artista, com obras em várias cidades brasileiras e no exterior, apresenta a sua obra como “uma lembrança da nossa ancestralidade brasileira, ancorada no povo preto e nos povos indígenas”.
A questão judicial existe desde 2018, mas só veio a público em novembro último, com a divulgação pelo Cura de um abaixo-assinado em defesa da pintura. Quanto ao valor artístico da obra em si mesma, as questões do negro e do feminino são expressivas e predominantes, colocando a figura como divindade capaz de, como apontam os triângulos realizados por Criola, conectar o mundo sagrado (superior, dos deuses) ao profano (inferior, dos seres humanos).
Quanto à presença da cobra, sua presença ocorre em diversas mitologias, indicando geralmente o contato com o corpo e a sexualidade. Por isso, nada mais natural que rasgue o ventre, abrindo os portais da percepção de mundo da figura central, ampliando sua função de protetora de um povo, como indica o nome da obra.
Ao lado esquerdo, a presença de uma vulva, de onde escorre uma gota de vida a ser recolhida pela Guardiã chocou alguns. A presença da genitália feminina pode ser encontrada, porém, na Vênus de Willendorf, há 25 mil anos a.C, provavelmente com fins ritualísticos de fecundidade; no quadro “A Origem do Mundo”, de 1866, pintado por Gustave Courbet a pedido de um colecionador de imagens eróticas; na série “Novena”, de Mara Martins, exposta em São Paulo, SP, em 1999, discutindo religiosidade e sexualidade da mulher, e, no final de 2020, na escultura “Diva", instalada na Usina de Arte, em Água Preta (PE), que integra uma série da artista Juliana Notari sobre violências contra a mulher.
A discussão em torno da obra, portanto, não é um debate artístico, mas moralista. Os que afirmam os contestadores do trabalho não tratam de questões estéticas, mas estão incomodados com o moral enfocar a mulher negra e a sexualidade feminina.
A potência do trabalho enquanto obra de arte se demonstra no impacto visual que gera ao lidar com arquétipos femininos, que envolvem o posicionamento da mulher negra numa sociedade em que o machismo e o racismo se manifestam de maneira preconceituosa e inaceitável.
Oscar D’Ambrosio