O poder da imagem é o grande ensinamento que o gravador e desenhista Marcello Grassmann, falecido em 2013, nos dá. Seus seres fantásticos podem despertar as mais diversas alusões a mitologias e a tradições da história da arte, mas são, acima de tudo, uma maneira de exercitar tecnicamente o aprendizado de toda uma vida.
Nascido em São Simão, SP, em 1925, o artista teve, por volta dos 12 anos, como uma de suas primeiras referências, as ilustrações de Gustave Doré para clássicos da literatura, como Dom Quixote, de Cervantes e a Comédia, de Dante Alghieri. Entre 1939 e 1942, quando frequenta, em São Paulo, SP, o Instituto Profissional Masculino (Escola Técnica Getúlio Vargas), onde conhece os futuros artistas Flávio Shiró, Otávio Araújo e Luiz Sacilotto, ao realizar cursos de fundição, mecânica e entalhe em madeira, é com esta última e com o desenho que desenvolve maior empatia,
Armários e molduras de espelhos que faz nessa época já trazem o universo fantástico de monstros oriundos de referências europeias. A partir de 1947, passou a fazer ilustrações, algumas de escritores, como a de James Joyce, que guarda em seu ateliê, na rua Visconde Ouro Preto, no Centro, para diversas publicações, como o Diário de São Paulo, dirigido por Geraldo Ferraz, com textos de Pagu.
Do entalhe, Grassmann foi logo, porém, para a xilogravura e, em seguida, em busca de novos desafios, entre 1949 e 1950, por recomendação de Oswaldo Goeldi, frequenta, no Rio de Janeiro, RJ, o curso de gravura em metal com Henrique Oswald no Liceu de Artes e Ofícios. Também estuda litografia com Poty Lazzarotto.
Prêmio de viagem à Europa (1952) no Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no ano seguinte, cursa litografia na Academia de Artes Aplicadas e frequenta a Academia Albertina, em Viena, Áustria, além de se aperfeiçoar em outras casas de cultura na Itália. Em 1955, conquista, com suas xilogravuras, na III Bienal de São Paulo, o prêmio Melhor Gravador Nacional. São abertas, assim, veredas que foram se aprofundando com o trabalho em gravura metal e desenho.
Seu imaginário passa a ser visto por muitos como tenebroso, de alguma forma, ou mesmo assustador. O que parece surgir é muito mais uma construção pessoal, baseada numa admiração pelos mestres do Velho Mundo, como Dürer e Brueghel. Aparece então um universo de guerreiros, donzelas, peixes, crustáceos, cavalos, cavaleiros, minotauros e elmos em que há uma atmosfera misteriosa, plena, no entanto, de lirismo, sensualidade e um humor e bizarrice peculiar.
Alguns atribuem essa multiplicidade de imagens a uma espécie de jornada pelo inconsciente. Prefiro ler o conjunto de sua obra como uma espécie de visão crítica e até bem-humorada da sociedade e das paixões humanas. Seus desenhos e gravuras conformam uma sólida e coerente visão de mundo, rara de encontrar.
Trata-se de um conjunto em que existe a prática da técnica como uma existência concreta de um pensar muito especial, em que o traço marcante e vigoroso do artista não pode ser visto desvinculado de seus primeiros trabalhos, como o entalhe de uma espécie de monstro que guardava em um espelho quebrado em seu ateliê. Nessa imagem, criada quando ele tinha menos de 15 anos, já estava o potencial que desabrocharia num dos principais desenhistas e gravadores brasileiros.
Oscar D’Ambrosio