Desde a popularização da fotografia e a difusão do jornalismo, a arte volta-se sobre si mesma e busca um autoconhecimento, generalizando e regenerando a vida. Os artistas trabalham com a linguagem e, ao criá-la, o próprio mundo é transformado.
No século XX, a arte torna-se construção e representação do real através do trabalho de ver e compor formas e símbolos no espaço e no tempo. Ao fugir dos estereótipos que residem em todo signo, busca novos recursos expressivos, motivando Kandinsky a dizer: “Todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam a uma necessidade interior”.
O artista é o demiurgo que, afastando-se da realidade aparente e dos seus signos sacralizados e cristalizados, busca uma outra realidade, mais essencial, que surge entre as frestas da relação homem-mundo. O pintor desenhista e artista gráfico brasileiro Antonio Peticov (Assis, SP, 1946) filia-se exatamente a essa família de criadores que procura uma realidade latente, além daquela das aparências cotidianas. Sua arte é uma atividade lúdica e reflexiva, tornando-se “uma mentira que nos faz ver a realidade”, palavras de Pablo Picasso aplicáveis aos demiurgos do século XX. Peticov freqüentou diferentes cursos e ateliês em São Paulo.
Na década de 1970, residiu em Milão e depois transferiu-se para Nova York, caracterizandose por uma pintura concentrada na produção de imagens exacerbadas, quase fantásticas, de paisagens, objetos e cenas conhecidas situadas em novos contextos ou em combinações surpreendentes. Obra de 1975, A Passagem (140x 150 cm) será o paradigma para conhecer melhor os principais símbolos presentes na ampla produção artística de Peticov.
Ao apontar dez deles, espera-se contribuir para uma futura reflexão sobre as criações do artista como um todo. O preto, cor das profundezas abissais, predomina no quadro. Evoca o nada e o caos, ou seja, a confusão e a desordem. Trata-se da própria obscuridade das origens que precede a criação em todas as religiões.
A ignorância hindu, a sombra de Jung e a Serpente-Dragão de diversas mitologias simbolizam exatamente as negras limitações que cada um precisa vencer interiormente para assegurar a própria metamorfose rumo ao divino. Por outro lado, assim como a noite contém a promessa da aurora e o inverno antecede a primavera, o preto está vinculado a uma promessa de vida renovada, esperança que se confirma em relação aos outros símbolos presentes em A Passagem.
Nesse sentido, destaca-se a escada. Símbolo por excelência da ascensão e da valorização, liga-se à verticalidade, indicando uma via de combinação em sentido duplo entre diferentes níveis. No presente caso, a escada é o elemento que propicia a passagem do caótico negro ao harmonioso azul e vice-versa.
A escada tem quatro degraus. Esse número vincula-se aos elementos da natureza (terra, ar, água e fogo), às estações do ano (inverno, primavera, verão e outono) e às virtudes fundamentais do homem (coragem, tolerância, generosidade e fidelidade) e da mulher (habilidade, hospitalidade, lealdade e fecundidade).
De posse dessas virtudes, complementando-se, o ser humano atinge a luz. Esta sucede as trevas na ordem da manifestação cósmica e na iluminação interior. Opõe-se ao caos exatamente por simbolizar valores da evolução interior que permitem à luz da consciência aflorar no negro inconsciente.
Tanto isso é visível na obra de Peticov que o caótico negro predominante é pontuado por estrelas, representações do homem regenerado, brilhante como a luz em meio às trevas do mundo profano. As estrelas são pontos de esperança na noite da existência.
A abertura que permite a passagem de caos para a luz é um quadrado, figura geométrica universalmente empregada na linguagem dos símbolos ao lado do centro, do círculo e da cruz. Altares, templos e cidades adotam a forma quadrangular, manifestação concreta de um mundo estabilizado.
Os pitagóricos, segundo Picasso, viam o quadrado como a reunião de potências divinas. Réia, mãe dos deuses, manifestar-se-ia através da água (o local em que nasceu Afrodite), do fogo (a chama eterna de Héstia), da terra (a fertilidade de Deméter) e do ar (região dominada pela hera, planta dedicada à deusa homônima). Por analogia, a tradição cristã considera o quadrado o símbolo de um local harmonioso, o cosmo. Neste, cada ser humano teria quatro possibilidades de inspiração: a divina, a angelical, a humana e a diabólica.
O símbolo corresponde então à reunião desses potenciais nos limites terrestres. Dentro de um quadrado, manifestam-se sentidos secretos e poderes ocultos. É preciso mobilizar-se internamente para entrar ou sair dele. A escada, com seus degraus de virtude, é precisamente uma maneira de entrar ou sair do quadrado, símbolo de energias concentradas e poderosas.
Na obra de Peticov, o céu azul no interior do quadrado ganha conotações de manifestação direta de transcendência, do perene e do sacro. O fato de estar elevado em relação ao céu estrelado negro já lhe dá poder. Afinal, seja no Budismo, no Islã, em Dante ou na China, existe a crença de uma hierarquia de céus que devem ser galgados um a um.
O céu representa a plenitude da busca humana de um lugar em que a perfeição do espírito seja possível. No presente quadro, o céu é azul, cor vinculada ao infinito e à transformação do real em imaginário. A lenda do pássaro azul da felicidade corrobora esse raciocínio.
Os egípcios, por exemplo, consideravam o azul como a cor da verdade e o limiar que separa os homens dos seres divinos que governam os seus destinos. Passar do negro ao azul é realizar a jornada de Alice, atravessando o espelho e penetrando no país das maravilhas, da fantasia e da divindade.
Há ainda uma lua no céu azul. Trata-se de um símbolo ligado aos ritmos biológicos, às águas, à chuva, à vegetação e à fertilidade. Crescendo, decrescendo e desaparecendo, a lua vincula-se ainda ao sonho e ao inconsciente, elementos da vida noturna.
Se a água (úmida) e a terra (fria) estão próximas ao universo da escuridão, o fogo (calor) e o ar (seco) associam-se ao dia e aos símbolos solares da consciência. Surge então uma rica imagem. A lua crescente (índice de transformação e crescimento) aparece no céu azul (harmonia) dentro de um quadrado (local sagrado) em meio a um espaço negro (caótico) em que se vislumbram estrelas (faíscas da consciência). P
ara sair das trevas e atingir o cosmo, é preciso recorrer aos quatro degraus (virtudes) da escada (símbolo da verticalidade). Quem sobe a escada aproxima-se da lua transformadora, crescendo interiormente. Se o negro é a ausência de cor, o branco, presente na lua, na escada e nas estrelas, constitui a soma de cores. Traduz um sentimento de silêncio absoluto, de uma nada interior ao nascimento que conduz ao outro lado do abissal negro.
O branco é a cor da revelação diurna, da transfiguração interna que desperta para o entendimento. Explica-se assim a auréola branca dos anjos, seres puros que vivenciam a teofania (manifestação de Deus) e permanecem com o vestígio luminoso de um conhecimento que os ultrapassa.
Sendo os signos linguísticos portadores da dialética refletir (reforçar a ideologia dominante, a paráfrase, a repetição e a conformidade) / refratar (estimular a paródia, a deformação e a renovação), a arte deve ser considerada como uma dominância da refração sobre o ato de refletir, pois destrói o automatismo preceptivo e trabalha com a renovação e a refração que os signos possibilitam.
Peticov desconstrói a realidade para oferecê-la ao fruidor de uma nova maneira. Sua modernidade dilui cada vez mais os referentes cristalizados, valorizando a obra de arte como uma unidade autônoma, com valores próprios, uma autêntica trapaça salutar (Ronald Barthes) em que a arte cumpre sua função de mentira, desnudando a realidade aparente em busca de outra, essencial.
Os dez símbolos enfocados permitem diversas leituras do quadro em questão. A saída do espaço preto através da escada de quatro degraus conduz à luz, que está presente nas estrelas do espaço escuro, torna-se mais intensa no quadrado em que se destacam o céu azul e a lua branca.
Simbolicamente, é possível decodificar os elementos apontados em A Passagem como a esperança de deixar o caos da inconsciência por intermédio das virtudes ascencionais que levam ao autoconhecimento. Este, disperso nas trevas primordiais, e plenamente vislumbrado em um espaço sagrado, sublime e repleto de harmonia que pode ser atingido através de transformações sucessivas em direção à pureza espiritual.
Sendo assim, a arte de Antonio Peticov funciona como uma máscara que esconde o rosto. Desvendá-la representa a morte do minotauro, no labirinto da inconsciência, graças à espada sagrada de Teseu, e a saída do caótico universo da mente, por intermédio do fio de Ariadne, luz iluminadora da consciência que as densas obras de arte geram no fruidor, desafiando-o a repetidos exercícios interpretativos.
Oscar D’Ambrosio, jornalista, integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil) e é autor, entre outros, de Contando a arte de Peticov (Noovha América) e Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus (Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).