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Audálio Duarte

Audálio Duarte

Entre Apolo e Dionísio

De tanto olharmos para a realidade, ela parece sempre igual. Torna-se às vezes quase impossível lançar sobre ela novas vistas. Imersos nas atividades cotidianas, corremos o risco de perder a capacidade de descobrir a possibilidade de ver o dia-a-dia com criatividade.
O artista plástico Audálio Duarte não sofre desse mal. Cada tela oferece uma mescla de elementos cotidianos em situações inusitadas, dentro de uma visão surrealista rica em conotações. Diversas imagens se articulam para formar novos significados, em que o sugerido é muito mais forte do que aquilo que é explicitamente colocado na tela.
Nascido em Limoeiro, Alagoas, em 24 de junho de 1954, cursou a Faculdade de Desenho da Universidade de Marília (Unimar) e recebeu a Menção Honrosa no V Salão de Artes Plásticas de Assis, em 2000. Já criou capas para livros, elaborou fantasias de alegorias para a escola de samba, em Tarumã, SP, e realizou exposições em diversas cidades de São Paulo e também em Várzea Grande, MT, Maringá, PR e Rio de Janeiro, RJ.
Proprietário de uma empresa que realiza as propagandas de eventos da cidade de Assis e região, Duarte confecciona faixas, cartazes e até produz cenários para espetáculos. Essa mesma versatilidade de ação se observa em sua pintura, que, em traços surrealistas, lança novos olhos sobre o mundo.
A tela Descaracterização, por exemplo, ilustra bem a capacidade do artista de criticar o mundo contemporâneo. Uma televisão portátil e uma concha gigantesca surgem lado a lado dominados pela cor azul. O aparelho, fora de seu ambiente natural, abre sua tela para novas dimensões azuladas, auxiliando a construir um mundo de evocações de sonhos, ampliado pela presença da concha, que guarda, em suas reentrâncias, o ruído das ondas do mar.
A água também é presença marcante em Egocêntrico, trabalho em que a figura do ser ensimesmado aparece de maneira assustadora e imponente, numa figura central que evoca uma cabra ou um carneiro mecânico que domina imponente a tela. Uma espécie de focinheira e o cenário em ruínas acentuam o conceito de que vivemos numa sociedade decadente, de seres humanos que se regem apenas pelos próprios sentimentos, perdendo progressivamente a capacidade de lidar com os outros.
Falsídica inauguração combina azul, vermelho e tom de pele numa imagem em que as ruínas novamente são destaque. Um muro rachado com os tijolos aparecendo é a metáfora de uma sociedade partida, em que há cada vez menos esperança. As aparências imperam e as pessoas sobrevivem graças às máscaras que utilizam.
Um trabalho que se aproxima ainda mais dos arquétipos surrealistas é Ilusão e feridade. Há nela um tom de metalinguagem pela presença de pincéis e palhetas de pintura. O leão, símbolo do vigor, do poder e da força, próximo ao ovo, indicação do embrião da vida e da fragilidade da existência, se conjugam nos dois caminhos principais da arte ao longo de sua história.
De um lado, há as manifestações apolíneas (do deus grego Apolo), racionais, equilibradas como um ovo sobre uma coluna grega. Em contrapartida existe o princípio dionisíaco (do deus Dionísio) e destruidor, como o do leão, que tem a capacidade de tudo destruir e desmontar antes que uma nova estruturação seja proposta.
A obra Mãe de leite ilustra justamente esse jogo ambivalente entre o equilíbrio possível e as poderosas forças telúricas. Uma figura feminina aperta o bico de seu seio para derramar o leite da vida e mãos deformadas brotam da parte inferior do quadro para colher esse alimento divino. Uma delas, a mais próxima do seio, oferece uma concha, recipiente natural pronto para juntar o líquido branco.
Talvez a concha derrame apenas água, como aparece em Música dos mares, uma das telas mais líricas de Duarte. Uma figura andrógena sentada em uma praia tem na cabeça uma grande concha, que derrama o líquido sobre uma outra concha em suas costas, num jogo óptico refinado. À direita do quadro, uma outra concha surge imponente, criando um curioso dialogo de formas.
A protagonista assiste a tudo indiferente, com solene passividade, como se as ações da natureza não estivessem ocorrendo. O que fascina na imagem é esse clima apolíneo, em que tudo parece se integrar e onde nada parece necessitar de alterações, numa espécie de Éden marítimo.
Situação oposta é visualizada nas telas O leitor e Transgressividade. Na primeira, uma espécie de robô se encontra lendo num ambiente marcado pela presença de tábuas quebradas, escadas parcialmente visualizadas e colunas que sustentam um decadente ambiente solene. A imagem inquieta o observador, que não se conforma com a falta de movimento da personagem central.
A figura no centro da tela, com uma espécie de armadura medieval domina a cena como o proprietário do ambiente, espécie de senhor de engenho ou latifundiário que tudo sabe e controla. Como ocorre com Paulo Honório – o célebre personagem de Graciliano Ramos em São Bernardo – o protagonista parece não se importar com o ar passadista que o rodeia e lê passivamente o seu jornal enquanto o mundo rui a sua volta.
Trangressividade transmite outro tipo de angústia. A imagem evoca um jogador de sinuca mecanizado num ambiente lúgubre. Dedos estilizados contrastam com os olhos humanos e expressivos da figura central. O que poderia ser um jogo se transforma num ato de agressividade e de transferência de violência, um ato dionisíaco, enfim.
O talento pictórico de Duarte está nesse jogo que tão bem realiza entre o equilíbrio almejado pelo ser humano e a violência primordial. Com sua visão original de mundo, coloca na tela Apolo ao lado de Dionísio, em imagens vigorosas e criativas, permeadas por amplo simbolismo.

Cada tela do artista alagoano estimula o diálogo entre o apolíneo e o dionisíaco. Seja uma ou outra a predominante, o grande vencedor é sempre o observador das telas do artista, premiado por ver, em tons geralmente azulados, o combate visual entre essas duas forças primordiais da existência humana, que encontra em Duarte um de seus grandes expoentes.