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Anna Maria Maiolino

Anna Maria Maiolino

Muito mais que arroz e feijão

  A montagem, pela sexta vez, em 2007, na Galeria Milan, em São Paulo, SP, da instalação Arroz & Feijão, de Anna Maria Maiolino, motiva a pensar porque esse trabalho permanece vigoroso tanto tempo após a sua versão original, na Aliança Francesa, no Rio de Janeiro, em 1979.
  Nada mais equivocado que dizer que o mundo não mudou de lá para cá, pois a globalização e a internet reduziram fronteiras e geraram novas formas de comunicação entre as pessoas, além de maneiras cada vez mais amplas de disseminar informações, conceitos e pensamentos.
  A instalação permanece atual, em primeiro lugar, por ter um inegável impacto visual. Mas isso seria pouco, embora uma mesa posta com pratos brancos, com terra dentro, onde se ergue o resultado do poder gerador da natureza. Sementes de arroz e feijão libertam seus caules gradativamente num movimento ascensional vertical.
  A crítica à fome do mundo está ali presente, bem clara, mas se faz ainda mais forte pelos pratos vazios colocados em volta da mesa e pelo vídeo em que uma boca, ornada com um sensual batom, não pára de comer, quase num ritual de movimentos para os quais não devotamos atenção no dia-a-dia.
  Cada elemento isoladamente não parece genial, mas o conjunto funciona. Seu grande segredo está justamente em não ser pretensiosa, como boa parte das instalações que a sucederam no circuito de arte. Ela não se propõe a discutir um assunto, ficando na intenção, mas o evidencia.
  E faz isso da melhor maneira possível, com uma mensagem clara e, acima de qualquer coisa, com um inegável senso de humor aliado a um certo tom solene, assegurado pela qualidade da mesa e das cadeiras, elementos suficientemente fortes no sentido de indiciar que aquela mesa não é para qualquer um sentar.
Isso é o mais curioso. Não nos sentimos convidados à refeição. O arroz e o feijão se erguem com um ar majestoso e criam distância. O efeito plástico é imponente, mas estabelece um curioso afastamento do observador, que não consegue se ver ali sentado. Prefere se aproximar do vídeo, colocado atrás de uma das cabeceiras da mesa.
O ato de comer passa a ser visto como um ritual e, sendo assim, não é para todos. Essa é a grande questão que a instalação coloca. Para os que comem muito, esse momento divino da refeição se vulgarizou – e, para os que não têm de que se alimentar, sentar numa mesa daquelas é um ato tão distante quanto adquiri-la como objeto de desejo.
A instalação incorpora assim, em uma de suas múltiplas leituras, a questão daquilo que o ato de comer junto representa. E preservar esse ritual não é tarefa simples. Alguns o ridicularizam por vê-lo prosaico; outros praticamente o desconhecem enquanto cerimônia, vendo-o apenas como uma necessidade básica igual a tantas outras.
Arroz & Feijão, portanto, é muito mais que comida na mesa ou sementes germinando na terra. Trata-se de uma ritualística visão do mundo, em que, acima do comer ou não, está o viver ou não, entendendo este verbo não só como nascer, crescer e multiplicar-se, mas como dominar o campo do simbólico.
Nesse aspecto, sentar-se em uma mesa para saborear um prato, mesmo o mais popular do país, é um ato a ser valorizado. Trata-se de um tributo ao ser brasileiro e de pertencer à raça humana, única na importância que dá ao fato de permanecer junto, no mesmo espaço, para comer. O que está no prato, em última análise, é o de menos, pois cada um vê o que deseja. O importante é estar ali e pensar-se como pessoa e cidadão.
A dimensão social e mesmo antropológica da instalação a torna eterna. Será continuamente remontada por não se esgotar em seu sentido mais denso. O mundo poderá mudar, mas a relação visceral de cada um com a mesa e com o que significa fazer parte dela não se altera.
Trata-se de uma eterna reflexão de Anna Maria Maiolino sobre o porquê do comer para existir, mesmo que essa existência possa ser vazia de sentido, analogia possível com os pratos brancos sem comida na sala de exposição. Seu principal significado – e mais importante – está em promover o pensar sobre a refeição como um ato simbólico e mágico, sem o qual perdemos um pouco de nossa humanidade.