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Ana Guitel Nigri

Ana Guitel Nigri

O pensar e o fazer

O panorama da arte contemporânea oferece, entre seus diversos paradoxos, um que pode servir de paradigma para buscar um melhor entendimento do processo criativo. Ele reside no diálogo entre o fazer e o pensar. Embora facetas de uma mesma moeda, essas atividades geram trabalhos plásticos, muitas  vezes, de naturezas diferentes.
Há criadores que se saem muito bem no primeiro aspecto, ou sejam, apresentam obras construídas com um domínio técnico assombroso, mas talvez falte um conceito que faça que cada um desses trabalhos se integre numa poética plástica que os torne ainda mais magníficos.
Por outro lado, há aqueles que são mestres nos conceitos e, capazes de discorrer prontamente sobre uma obra, seja sua ou alheia, não atingem, porém, no próprio resultado plástico, a densidade de seu discurso. Pecam ou pela concisão desmedida ou pelo discurso verborrágico, não atingindo aquilo que suas palavras anunciam ou enunciam.
A artista plástica carioca Ana Guitel Nigri foge dessas armadilhas. Nascida em 1959, formada e pós-graduada  na Escola Guignard, em Belo Horizonte, e com curso de escultura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, ela consegue colocar o saber acadêmico em benefício do ato de lidar com os materiais.
  A exposição que realizou, em julho, na galeria de arte do Clube A Hebraica, em São Paulo, SP, dá uma dimensão exata de como seu discurso e sua ação caminham em paralelo, mas, paradoxalmente, se encontram no trato com a madeira reciclada e o metal. Os objetos expostos não necessitam de discurso para serem melhor apreciados – mas esse falar sobre eles os enriquece.
  As Lanças de Paz, por exemplo, alcançam um efeito que ultrapassa o fato de evocarem originalmente armas, mas terem agora inscrições de paz. Assim como ocorre com escultores do quilate de Mestre Didi ou Mestre Valentim, que vêm da cultura afro, o que está em jogo não é apenas um referencial étnico ou religioso.
  Ana, assim como os criadores citados, atinge um semelhante universo de limpeza plástica e de profusão de significados, pois suas lanças de paz transmitem extremo cuidado na feitura e, acima de tudo, um equilíbrio arquitetônico na forma de apropriação do espaço.
  O mesmo ocorre em peças de rigoroso exercício técnico para a realização de esferas com frases em hebraico escritas com pirógrafo. Nelas é possível observar o apurado trabalho de uma artista que domina a técnica, mas a coloca, com talento, a serviço de idéias mundiais, que extrapolam fronteiras culturais, raciais, étnicas ou religiosas. 
  A serie Guardiões da  Terra acrescenta à madeira reciclada e esculpida o vidro, onde há terra de Israel. Uma primeira leitura ingênua pode-se ater a esse dado concreto, mas, se esses grãos ali presentes forem considerados como parte da grande mãe Terra, percebe-se que Ana Guitel não fala apenas de sua pátria.
  Ela atinge, como as mais autênticas formas de arte, uma proporção universal, algo evidenciado nas esculturas sementes. Estas guardam dentro de si sementes reais e, se movidas, funcionam como chocalho ou similar instrumento de percussão. São exemplos de uma arte sem fronteiras, fortes em seu simbolismo original e universal.
  Uma obra que reúne os elementos enunciados é Enlace. Ali está a madeira esculpida encontrando a si mesma num exercício de virtuosismo técnico e reflexão conceitual. O movimento de comunhão exposto é o do artista com o seu material e dos diversos seres humanos entre si.
  Ana Guitel Nigri toma uma cultura específica – a judaica – e a coloca, com sua perícia técnica e pensamento requintado, em uma outra dimensão: a dos cidadãos do mundo. A terra que está em suas peças, assim como a madeira e o metal,  não são, de fato, de uma região ou país. Pertencem sim à humanidade e constituem a melhor resposta que é possível dar ao nosso caótico mundo contemporâneo: arte de qualidade e sensibilidade.