Liberdade com rigor
Conceber a arte somente como um exercício de liberdade pode levar a alguns equívocos conceituais. Pode-se espalhar a falsa noção de que basta não se impor barreiras para criar, pois a magia da arte estaria em não ter freios para o que se deseja concretizar em termos de pintura, gravura, desenho, fotografia ou qualquer outra forma de expressão.
A exposição “Alice Brill – Batik e outras artes”, no Museu de Energia de Itu, interior de São Paulo, de julho a agosto de 2006, alerta justamente para a possibilidade do rigor técnico caminhar junto ao denso pensamento sobre aquilo que se faz, gerando o diálogo entre o que se executa e o que se diz.
A curadora Maria Célia Bombana e a apresentação de Percival Tirapelli enfatizam os aspectos mais conhecidos de Alice Brill, principalmente o fato de sua tese de doutorado na USP ter enfocado o batik sobre o papel de arroz, uma feliz retomada de uma técnica antiqüíssima sobre um suporte de imensa possibilidade expressiva.
A exposição, no entanto, fascina, além do ponto citado, por mostrar que a arte só é digna desse nome quando consegue mobilizar o observador a tomar distintos trabalhos de uma mesma artista e fazê-los dialogar num jogo de semelhanças e diferenças que se torna mais rico quanto mais ampla for a capacidade do criador em questão.
Nascida na Alemanha, em 1920, e residente no Brasil desde 1934, aqui chegando com a mãe, fugindo do nazismo, Alice trouxe a influência do pai, artista plástico morto num campo de concentração e absorveu, em São Paulo, a cultura italiana presente no Grupo Santa Helena.
O resultado é encontrado em suas vertentes que se cruzam muito na exposição de Itu. Ao se valer do batik, por exemplo, para erguer casarios imagéticos, o predomínio das linhas retas logo se apresenta como um elemento visual forte. De maneira aparentemente paradoxal, seu mangue com troncos brancos se delicia em propor áreas a partir das formas curvas das árvores.
É nessa conversa entre a reta e a curva que Alice Brill constrói sua poesia visual. Se, na fotografia, por exemplo, colocou a técnica esmerada a serviço da proposta de fazer retratos de crianças sem pose ou retoque; no batik, a “pose” de um Casario em vermelho revela plasticidade análoga àquela oferecida por um Mangue.
Isso se dá porque, na verdade, a artista não fotografou crianças ou pintou casarios ou mangues. Ela se aprimorou tecnicamente, ao longo da vida, para conquistar a liberdade de, por meio dos recursos adquiridos, realizar o que julgasse melhor. Aprendeu a ser livre pela contenção dos excessos e estímulo incessante à ousadia.
Figuras opostas, um trabalho em preto e branco, feito com técnica mista sobre papel de arroz, parece cristalizar a capacidade de Alice Brill de desvendar o único mundo que a artista realmente busca conhecer: o do ser humano. Os casarios ou mangues da artista não oferecem a possibilidade explícita de visualizar gente, mas é a técnica apurada criada por pessoas que se cristaliza graças aos materiais que a natureza fornece.
A grande arte – aquela que conquista o observador, independente de ser figurativa, abstrata, geométrica, colorida ou em preto e branco – precisa ter a capacidade de se aproximar visual e emocionalmente das pessoas e, nisso, seja no uso das formas curvas ou das linhas retas, a criadora alemã teve sucesso.
Sua produção clama por ser vista e, nela, figuras opostas são apenas facetas distintas de um dilema: o do ser humano vivenciar hodiernamente a experiência de estar dividido e inteiro ao mesmo tempo. O desafio é para poucos e a artista o enfrenta com louvor pelo simples fato de ter aprendido a ser livre sem perder a precisão técnica.
Unindo a liberdade criativa ao rigor da esteta, numa espécie de liberdade responsável de que a arte se beneficia e num jogo entre o humilde respeito à tradição e o elogio da modernidade e da experimentação, Alice Brill passou a vida criando e tendo como limite de sua produção oferecer ao espectador um trabalho em que o rigor e a liberdade dão-se as mãos num sutil sorriso de competência.